Evangelho
e Evangélicos
Quem são exatamente os evangélicos?
Parece que uma nova tempestade ou, pelo menos, um vendaval se
formou recentemente ao redor do termo "evangélico". Um número
crescente daqueles que identificam como evangélicos está compreendendo que nem
todos crêem nas mesmas coisas, nem mesmo em relação às doutrinas essenciais. Em
resposta a isso, alguns começaram a escrever manifestos que tentam reafirmar as
características de uma identidade evangélica. Outros estão escrevendo livros e
realizando conferências que têm como alvo recentralizar o movimento como um
todo. Outros decidiram que é melhor descartar o termo e chamar a si mesmos de
"pós-evangélicos".
Esse problema não é novo. Nunca foi fácil determinar quem são os
evangélicos, porque o evangelicalismo sempre foi um movimento diversificado.
Lutero queria que seus seguidores fossem chamados de "evangélicos",
significando pessoas do evangelho (foram os seus inimigos que apelidaram seus
seguidores de "luteranos"). O outro braço da Reforma também se
alegrava em compartilhar da designação evangélica (os luteranos ortodoxos
cunharam o termo "calvinistas" como um modo de fazerem distinção
entre seu próprio ponto de vista e opiniões reformadas sobre a Ceia do Senhor).
Depois, com o advento do pietismo e do avivalismo, o rótulo
"evangélico" tomou muitas direções. Hoje o termo é uma designação tão ambígua que
alguns historiadores julgam que a melhor definição é a de George Marsden:
"Qualquer pessoa que gosta de Billy Graham".
No entanto, com um pouco de perspectiva histórica, não é difícil
perceber porque essas tempestades, ou vendavais, são constantes: o evangelho
está se tornando para sempre separado dos evangélicos; essa é a razão por que é
tão difícil saber quem são os evangélicos.
PIETISMO E AVIVALISMO
O termo "evangélico" entrou em uso comum durante a
Reforma como um esforço para esclarecer e proclamar o evangelho. Anglicanos,
presbiterianos e, no Continente, os seguidores de Bucer, Calvino, Knox e Beza
também gostavam do termo "reformado" porque o seu objetivo não era
começar uma nova igreja ou denominação, e sim reformar a igreja histórica. Além
disso, as igrejas luteranas e reformadas, apesar de suas importantes
diferenças, mantiveram-se lado a lado em defender o evangelho de distorções,
tanto de Roma como dos anabatistas.
O advento do pietismo e do avivalismo complicou as coisas. A
princípio, o pietismo era um movimento de reforma dentro das igrejas luteranas
e reformadas, estimulando uma conexão mais profunda entre a doutrina e a
piedade. Por fim, o pietismo começou a se parecer cada vez mais com a espiritualidade
anabatista. O avivalismo (inglês e americano) também empurrou o pietismo para
longe de suas raízes reformadas.
Um preço crucial de admissão ao arraial evangélico durante o
Primeiro Grande Avivamento era ser pró-avivamento. Muitos ministros luteranos e
reformados eram ambivalentes quanto à própria idéia de esperar tempos de
avivamento, suspeitando que ele abrigava uma opinião inferior do ministério
regular da igreja. Mas no Segundo Grande Avivamento não houve questionamentos. O foco mudou de uma ênfase
na obra salvadora de Deus, em Cristo, por meios dos instrumentos ordenados por
Deus, para uma ênfase nas decisões e esforços humanos, por meio de métodos e
"estímulos" pragmáticos. O principal personagem por trás do segundo avivamento, Charles
G. Finney (1792-1875), até rejeitava a doutrina do pecado original, da expiação
vicária, da justificação somente pela fé e o caráter sobrenatural do novo
nascimento.
O Segundo Grande Avivamento, representado por Finney, criou um
sistema de fé e prática adequado a uma nação autoconfiante. O evangelicalismo –
ou seja, o protestantismo americano do final do século XVIII – foi um
instrumento para inovações. Na doutrina, serviu à preferência da modernidade
quanto a uma confiança na natureza e no progresso humanos. Na adoração,
transformou o ministério centrado na Palavra e nas ordenanças em entretenimento
e reforma social, criando o primeiro sistema de estrelas na cultura de
celebridades. Na vida pública, confundiu o reino de Cristo com o reino deste
mundo e imaginou que o reino de Cristo poderia ser tornado visível por meio de
atividades sociais, morais e políticas dos santos. Havia pouco espaço para
qualquer coisa imporante que fosse capaz de restringir o movimento, disciplinar
suas celebridades empresariais ou questionar seus "avivamentos", à
parte de sua freqüente publicidade de curta duração.
Em algum ponto ao longo do caminho, o evangelho se tornou
separado da evangelização; a mensagem ficou subserviente aos métodos. A religião americana
se tornou digna da caracterização de Dietrich Bonhoeffer: "Protestantismo
sem Reforma".[i]
"Encontros extremos", comentou B. B. Warfield, no final
do século XIX, a respeito dos pietistas conservadores e dos racionalistas
liberais. "Os pietistas e os racionalistas têm caçado juntos, em duplas, e
abrandado as suas contendas juntos. Eles podem diferir quanto a por que estimam
a teologia um traste e por que não querem que um futuro ministro desperdice seu
tempo em obtê-la. Um ama tanto a Deus, e o outro o amam tão pouco, que não se
preocupa em conhecê-lo".[ii]
Herman Bavinck, o colega holandês de Warfield, observou:
"Movimentos poderosos, como aqueles que o pietismo fez surgir na Alemanha
e que o metodismo desencadeou na Inglaterra e na América, todos eles tinham em
comum o fato de que mudaram o centro de gravidade do objeto da religião para o
sujeito da religião. A teologia seguiu esse caminho nos sistemas produzidos por
Kant, Schleiermacher e suas escolas".[iii]
A ala erudita do pietismo protestante na América tendeu a ser assimilada pelo
modernismo, enquanto a sua ala fundamentalista produziu uma colheita sempre
nova de jovens cínicos e iludidos que achavam a outra uma mera opinião
atraente. No entanto, modernistas como Harry Emerson Fosdick e fundamentalistas
como Bob Jones podiam citar Finney e seu legado com afeição.
A CORRENTE REFORMADA
Entretanto, a corrente reformada do evangelicalismo americano não
havia se esgotado completamente. O Princeton Antigo foi uma fonte especialmente
fecunda para renovação e defesa do legado do verdadeiro evangelicalismo.
Luteranos como C. F. W. Walther, presbiterianos como Archibald Alexander,
congregacionalistas como Timothy Dwight, episcopais como o bispo William White
e batistas como Isaac Backus podiam reconhecer uma essência de convicções
reformadas que tinham em comum contra a maré crescente de infidelidade. Muito
proveito resultou (e ainda resulta) da cooperação evangélica no campo
missionário, nos ministérios diaconais comuns e na erudição fiel.
Clérigos como Warfield e Hodge se consideravam evangélicos no
sentido distintamente reformado e se esforçaram por trazer o protestantismo
americano à harmonia com essa definição. Eles também eram firmemente
comprometidos e envolvidos de modo pessoal com os amplos esforços missionários
nos Estados Unidos e no exterior, e isso os colocava em constante comunhão e
cooperação com outros evangélicos.
Apesar disso, Warfield começava a perceber que a tensão entre
opiniões competidoras da identidade evangélica tornava mais difícil o
permanecer como apoiador irrestrito da causa evangélica. Em 1920, certo número
de evangélicos apresentou "um plano de união das igrejas
evangélicas". Warfiel avaliou o "credo" desse plano, enquanto
era estudado por presbiterianos, e observou que a nova confissão proposta
"não contém nada que não seja crido pelos evangélicos", mas "não
contém nada que não seja crido... pelos adeptos da Igreja de Roma". Ele escreveu:
Não há nada sobre a justificação pela fé neste credo. E isso
significa que todos os ganhos obtidos naquele grande movimento religioso que
chamamos de Reforma são lançados pela janela... Não há nada a respeito da
expiação no sangue de Cristo neste credo. E isso significa que todo o ganho da
longa busca medieval pela verdade é lançado sumariamente fora... Não há nada
sobre o pecado e a graça neste credo... Não precisamos mais confessar nossos
pecados; não precisamos reconhecer a existência de tal coisa. Precisamos crer
no Espírito Santo somente como "guia e consolador" – os racionalistas
não fazem o mesmo? E isso significa que todo o ganho que o mundo inteiro obteve
dos intensos conflitos de Agostinho é lançado fora juntamente com as outras
coisas... Também é verdade que os ganhos obtidos dos debates que ocuparam a
primeira era da igreja cristã, por meio dos quais atingimos o entendimento das
verdades fundamentais da Trindade e da deidade de Cristo, são lançados fora por
este credo. Não há Trindade neste credo; não há deidade de Cristo – ou do
Espírito Santo.[iv]
Se a justificação pela fé é o âmago do evangelho, Warfield
questionou, como podem "os evangélicos" omiti-la de sua confissão de
fé comum? Ele perguntou: "Este é o tipo de credo que o presbiterianismo do
século XX acha suficiente como base para cooperação nas atividades
evangelísticas? Então, ele pode prosseguir suas atividades evangelísticas sem o
evangelho, pois este credo nega completamente o evangelho". De novo, o
evangelho se separara dos evangélicos. "Comunhão é uma palavra
excelente", concluiu Warfield, "e um grande dever. Mas a nossa
comunhão, de acordo com Paulo, tem de ser no ‘progresso do evangelho’".[v]
O diagnóstico do cristianismo americano oferecido por Dietrich
Bonhoeffer ("Protestantismo sem Reforma"), depois de sua viagem para
preleções nos Estados Unidos, parece vindicado. Ele escreveu:
Deus não tem dado qualquer reforma ao cristianismo americano. Ele
lhe deu fortes pregadores avivalistas, clérigos e teólogos, mas nenhuma reforma
da igreja de Jesus Cristo por meio da Palavra de Deus... A teologia americana e
a igreja americana como um todo não têm sido capazes de entender o significado
do "cristicismo" pela Palavra de Deus e de tudo que isso significa.
Eles não entendem que o "criticismo" de Deus toca até a religião, a
cristandade da igreja e a santificação dos cristãos e que Deus fundou a sua
igreja acima da religião e da ética... Na teologia americana, o cristianismo é
essencialmente religião e ética... Por causa disso, a pessoa e a obra de Cristo
foram, quanto à teologia, colocados em segundo plano e permanecem mal
entendidos, porque não são reconhecidos como o único fundamento do juízo
radical e do perdão radical".[vi]
ONDE ESTÁ O EVANGELICALISMO HOJE?
Hoje, alguns dos maus frutos do pietismo e do avivalismo
subsistem. Muitos têm por certo que aqueles que são muito interessados em
doutrina são os que menos se interessam por alcançar o perdido (ou, como se diz
hoje, "os sem-igreja"). Os evangélicos são freqüentemente desafiados
a escolher entre tradicional
e missional,
dois campos que são descritos tipicamente como nada mais do que caricaturas. Os
primeiros evangélicos se reuniam, simultaneamente, ao redor de manter o
evangelho correto e de anunciá-lo, mas hoje a coalizão é definida, cada vez
mais, por seu estilo ("contemporâneo" versus
"tradicional"), sua política ("conservadorismo compassivo"
ou a mais nova redescoberta de raízes progressistas avivalistas) e suas
principais estrelas musicais, e não por suas convicções a respeito de Deus, da
humanidade, da salvação, do propósito da história e do julgamento final.
Entendo que nem todos esses "credos" são hoje tão
minimalísticos como aquele que Warfield avaliou. E o evangelicalismo americano
não tem permanecido sem os seus defensores da fé. Em sua declaração de fé, a
Associação Nacional de Evangélicos afirma a Trindade, a deidade de Cristo,
"a morte vicária e expiatória, por meio do derramamento do sangue de
Cristo", e a necessidade de renascimento espiritual. Contudo, ali não há
nenhuma menção da justificação – o artigo sobre o qual uma igreja se mantém de
pé ou cai –,
e a única convicção concernente à igreja é a crença em "uma unidade
espiritual de crentes no Senhor Jesus Cristo". O batismo e a Ceia do
Senhor não são nem mencionados.
Ironicamente, a genuína fé evangélica se encontra com freqüência
fora do movimento evangélico e dentro do evangelicalismo ela é contestada em
muitas frentes. Tem se tornado cada vez mais comum os evangélicos questionarem a
autoridade (e não menos a suficiência) da Escritura e as doutrinas básicas em
torno das quais evangélicos de diferentes segmentos eram capazes de se unir. De
acordo com cada grande pesquisa que tenho visto, a maioria dos evangélicos
americanos desconhece muitas das verdades básicas do cristianismo. Em vez
disso, há um amplo "deísmo moralista e terapêutico", como comprovou o
sociólogo Christian Smith. O fato de que pessoas que crescem em igrejas evangélicas
provavelmente – e, em alguns estudos, mais
provavelmente – aceitarão esse tipo de espiritualidade amorfa,
deixando de lado os credos cristãos, pode fazer você perguntar o que há de
"evangélico" no "evangelicalismo". O evangelho abandonou os
evangélicos?
Ao mesmo tempo, encontramos freqüentemente cativantes defesas do
cristianismo histórico, incluindo as percepções da Reforma, procedentes
daquelas que poderiam parecer as fontes mais improváveis.
UM PARQUE TRANQÜILO
Por tudo isso, ainda estou convencido de que há um lugar para
sermos "evangélicos". Por quê? Em palavras simples, porque ainda
temos o evangelho. Em minha opinião, o evangelicalismo serve melhor como um
parque tranqüilo, à semelhança dos parques públicos no centro das cidades da antiga
Nova Inglaterra, para todos os que afirmam este evangelho. É um lugar em que os
cristãos de igrejas diferentes se encontram para discutir o que têm em comum,
bem como as suas diferenças. Ajudam um ao outro a se manterem honestos.
Em sua fase presente, a igreja é um povo peregrino. Acho que a
confissão reformada é o mais fiel resumo dos ensinos da Bíblia. Contudo, a
minha fé é fortalecida por encontrar-me com cristãos de tradições diferentes
que me desafiam a pensar mais profunda e completamente a respeito das ênfases
que tenho perdido.
Esse lugar tranqüilo também provê uma área comum na qual os
cristãos podem testemunhar aos não-cristãos a esperança que compartilham e um
espaço comum no qual nossos vizinhos de determinada comunidade podem ser
servidos pelo amor cristão. O perigo surge quando o parque se torna dominado por uma
atmosfera quase pelagiana e, confiando em si mesmo, imagina que sua Grande
Tenda é a catedral que reduz as igrejas ali estabelecidas a simples capela
Michael Horton
Michael Horton obteve seu B.A pelo, Biola
University; seu mestrado pelo Westminster Seminary California e seu Ph.D pela
University of Coventry e Wycliffe Hall, Oxford. É presidente do White Horse
Media, Professor de teologia e apologética no Westminster Theological Seminary
na Califórnia, nos EUA e editor chefe da revista Modern Reformation. É autor de
vinte livros, sendo que vários já foram publicados em português.
Traduzido por: Pr. Wellington Ferreira
Revisado por: Tiago Santos
Copyright:
© 9Marks 2010
© Editora FIEL 2010.
Traduzido do original em inglês: Who Exactely are the evangelicals? Publicado por 9Marks.
Revisado por: Tiago Santos
Copyright:
© 9Marks 2010
© Editora FIEL 2010.
Traduzido do original em inglês: Who Exactely are the evangelicals? Publicado por 9Marks.
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